quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Segue abaixo um trecho do livro Gomorra, do jornalista italiano Roberto Saviano. Trata-se de um livro reportagem sobre a máfia napolitana, Camorra. Saviano levou anos para terminar esta obra que resultou neste livro e um filme que recebe o mesmo nome, ganhador de Cannes de 2008. Uma narrativa detalhista e muitas vezes tão realista que o leitor chega a sentir a tensão do narrador. No trecho a seguir, o jornalista disserta sobre a morte e os momentos finais da vida. Achei interessante postar isso aqui, me fez pensar bastante. Aproveite!

"Quando alguém morre na rua, provoca uma gritaria horrenda ao seu redor. Não é verdade que se morre sozinho, mas com caras nunca vistas diante do nariz, pessoas que tocam pernas e braços para ver se o corpo já é um cadáver ou se vale a pena chamar a ambulância. O rosto dos feridos graves, o rosto das pessoas que estão prestes a morrer parecem acometidos do mesmo medo. E da mesma vergonha. Parece estranho, mas um momento antes de tudo acabar há como que uma espécie de vergonha. Scuorno, como dizem aqui. Um pouco como estar nú em público. A mesma sensação de quando se é ferido mortalmente na rua. Não consigo me acostumar a ver mortos na rua. Enfermeiros, policiais, todos ficam calmos, impassíveis, fazem os seus gestos automaticamente, qualquer que seja o cadáver. “Temos calos no coração e couro forrando o estômago”, disse-me um jovem motorista de rabecão. Quando se chega antes da ambulância, é difícil tirar os olhos do ferido, ainda que se preferisse nunca tê-lo visto. Nunca se compreende que aquele é o modo como se morre. A primeira vez que vi um morto assassinado tinha 13 anos. Lembro-me daquele dia muito bem. Eu havia acordado tremendamente embaraçado porque do pijama, vestido sem cueca, sobressaía uma clara ereção involuntária. Aquela clássica ereção matutina, impossível de dissimular. Lembro-me deste episódio porque, enquanto estava indo para a escola, me deparei com um cadáver na mesma situação que eu ao acordar. Eramos cinco, com as mochilas cheias de livros. Tinham baleado um Alfa Romeo que estava no nosso caminho para a escola. Meus colegas se apressaram, curiosíssimos, para olhar. Viam-se os pés do morto no encosto de cabeça do banco. O mais medroso de nós perguntou a um carabiniere por que estavam no lugar da cabeça. O carabiniere não hesitou em responder, como se não tivesse percebido a idade do seu interlocutor.
“A rajada o fez capotar..."
Eu era menino, mas sabia que “rajada” significava tiros de metralhadora. Aquele camorrista tinha levado tanta bala que seu corpo dera uma espécie de cambalhota, a cabeça indo parar no chão do carro e os pés no encosto do banco. Depois os policiais abriram a porta e o cadáver caiu no chão como um picolé derretido. Observávamos indiferentes, sem que ninguém nos dissesse que aquilo não era espetáculo para crianças. O morto tinha uma ereção. Do jeans sujo via-se claramente. E isso me impressionou. Rememorei a cena durante muito tempo. Durante dias pensei como aquilo podia ter acontecido. No que o morto estava pensando, o que estava fazendo antes de morrer. Enchi os meus dias pensando no que ele tinha em mente antes de morrer; fiquei atormentado, até quando tive coragem de pedir explicação e me disseram que a ereção era uma reação comum nos cadáveres dos assassinados. Naquela manhã, uma menina chamada Linda, do nosso grupo, quando viu o cadáver escorregar pela porta do carro, começou a chorar e se escondeu atrás de dois meninos. Um choro contido. Um policial à paisana pegou o cadáver pelos cabelos e cuspiu na cara dele. Depois, voltando-se para nós, disse:
“Por que vocês estão chorando? Ele era um lixo, não aconteceu nada, esta tudo bem. Não aconteceu nada. Parem de chorar...”
Desde então não acredito mais em cenas da polícia científica usando luvas e caminhando devagar para no deslocar pólvora e cápsulas de bala. Quando chego perto de um corpo antes da ambulância chegar e observo os últimos momentos de vida de quem está se dando conta de que está morrendo, me vem à mente o momento final de O coração das trevas, quando uma mulher pergunta a Marlowe, já de volta à sua pátria, pelo homem que ela amou. Ela pede que ele conte o que lhe disse Kurtz antes de morrer. E Marlowe mente. Responde que ele chamou o nome dela, quando na realidade não pronunciou palavra nenhuma, doce ou preciosa. Kurtz disse apenas: “O horror”. É comum pensar que a última palavra pronunciada por um moribundo, seu último pensamento, seja o mais imporianie, fundamental. Que se morre pronunciando o que valeu a pena na vida. Não é assim. Quando alguém morre, nada revela senão medo. Todos ou quase todos repetem a mesma frase, banal, simples, imediata: “Não quero morrer”. Rostos que se contrapõem ao de Kurtz, que exprimem o desespero, o nojo, e a recusa de acabar de modo horrendo, no pior dos mundos possíveis. No horror.
Depois de ter visto dezenas de pessoas assassinadas, empapadas do próprio sangue misturado à sujeira da rua, exalando odores nauseabundos, olhadas com curiosidade ou indiferença profissional, removidas como lixo perigoso ou comentadas pela turba convulsa, cheguei a uma só certeza, um pensamento tão elementar que beira a idiotice: a morte dá nojo."

[páginas 120 - 122]

Um comentário:

Tiago Ferreira da Silva disse...

Um jeito bem pessoal de relatar as barbáries que a morte provoca no interior do ser humano. Nem tem o que comentar: linguagem mais contemporânea que essa, praticamente impossível!

Fica no ar a sugestão de leitura. Muito bem analisado (e abalizado!)!