quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Segue abaixo um trecho do livro O Muro de Jean-Paul Sartre.
Neste momento, o protagonista anti-herói e sociopata Paul Hilbert envia uma carta aos grandes pensadores de sua época. O trecho é bastante expressivo sobre o tanto que odeia as pessoas.
Sempre admirei esta crônica pelo conteúdo absurdo e seu final inesperado. Quando puder, leia pois vale a pena.

Senhor - Sois célebre e vossas obras alcançam tiragens de trinta mil exemplares... Vou dizer-vos por quê - é que amais os homens. Tendes o humanismo no sangue: eis a vossa sorte. Desabrochais quando estais em boa companhia; quando vêdes um de vosses semelhantes, mesmo sem conhecê-lo, sentis simpatia por ele.
Admirais seu corpo, pela maneira como é articulado, pelas pernas que se abrem e se fecham à vontade, pelas mãos sobre tudo; agrada-vos que haja cinco dedos em cada mão e que o polegar passe a opor-se aos outros dedos. Deleitai-vos quando vosso vizinho pega uma xícara da mesa, porque ele tem um modo de pegar que é propriamente humano e que sempre tender descrito em vossas obras como menos elástico e menos rápido que o do macaco, não é?
Porém muito mais inteligente. Amais também a carne do homem, seu comportamento de grande ferido em reeducação, seu ar de reinventar a marcha a cada passo e seu famoso olhar que as feras não podem suportar. Foi fácil pois encontrar a linguagem que convém para falar ao homem de si mesmo; uma linguagem pudica mas apaixonada.
Os indivíduos atiram-se com gula aos vossos livros, lêem-nos em boa poltrona, pensam no grande amor infeliz e discreto que lhes dedicais e isso os consola de muitas coisas, de serem feios, covardes, cornos, de não terem recebido aumento a primeiro de janeiro. E diz-se, de bom grado, de vosso último romance: é uma boa ação. Tereis curiosidade em saber, suponho, o que pode ser um home que não gosta de homens. Pois bem, sou eu e eu os admiro tão pouco que vou, agora mesmo, matar uma meia dúzia deles; talvez, vos pergunteis: por que somente uma meia dúzia? Porque meu revolver não tem mais que seis cartuchos. Eis uma monstruosidade, não?
Além do mais, um ato propriamente impolítico? Mas vos digo que não posso amá-los. Compreendo muitíssimo bem o que vós experimentais. Mas o que vos atrai neles me repugna. Vi como vós homens mastigarem com moderação, conservando o olho penitente, folheando com a mão esquerda uma revista econômica. Tenho culpa se prefiro assistir à refeição das focas ?
O homem nada pode fazer de seu rosto sem que isso vire um jogo fisionômico. Quando ele mastiga conservando a boca fechada, os cantos dos lábios sobem e descem, ele parece passar sem descanso da serenidade à surpresa chorona. Gostais disso, eu o sei, chamais a isso de vigilância do Espírito. Mas a mim isso me aborrece. Não sei por que; nasci assim. Se não houvesse entre nós senão uma pequena diferença de gosto, eu não vos importunaria. Mas tudo se passa como se tivésseis a graça e eu não. Sou livre de gostar ou não de lagosta à americana, mas se não gosto dos homens, sou um miserável e não posso encontrar um lugar ao sol. Monopolizaram o sentido da vida.
Espero que compreendais o que quero dizer. Há trinta e três anos que me choco com portas fechadas sobre as quais se escreveu: "Se não for humanista, não entre aqui". Tive que escolher abandonar tudo o que empreendi; precisava escolher - ou era uma tentativa absurda e condenada ou era preciso que redundasse cedo ou tarde em seu proveito. Os pensamentos que não lhes destinava expressamente, não chegam a destacá-los de mim, a formulá-los; permaneciam em mim como leves movimentos orgânicos. Mesmo as ferramentas de que me servia senti que lhes pertenciam; as palavras, por exemplo: desejara palavras minhas. Mas as de que disponho arrastaram-se por não sei quantas consciências; arranjam-se inteiramente sós na minha cabeça em virtude de hábitos que tomaram nas outras e não é sem repugnância que as utilizo escrevendo-vos. Mas pela última vez. Eu vos digo: ou amamos os homens ou eles não nos permitem trabalhar a sério. Eu não quero meios-termos. Vou pegar, agora mesmo, meu revólver, descerei à rua e verei se é possível executar bem alguma coisa contra eles.
Adeus, senhor, talvez sejais vós quem vou encontrar. Não sabereis jamais com que prazer vos farei saltar os miolos. Se não - é o caso mais provável - lêde os jornais de amanhã. Lá vereis que um indivíduo chamado Paul Hilbert matou, numa crise de furor, cinco transeuntes no bulevar Edgar-Quinet. Sabeis melhor que ninguém o que vale a prosa dos grandes quotidianos. Compreendei que não sou um "furioso". Estou muito calmo, ao contrário, e vos peço aceitar meus melhores cumprimentos.

Paul Hilbert

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